Edmilson, 16 anos, chegou à Clínica de Psicanálise do Centro
do Genoma Humano – USP encaminhado pela Associação Brasileira de Distrofia
Muscular – ABDIM, tentativa derradeira para trazê-lo de volta à vida. Ele
estava muito fragilizado, resistente aos tratamentos propostos pela
fonoaudióloga e nutricionista. Mostrava-se apático às propostas de intervenção
e não tinha nenhum interesse pela vida. Tinha perdido dez quilos em um ano,
sendo sete nos últimos seis meses – havia chegado ao seu limite. Toda a equipe
da ABDIM apostava no tratamento psicanalítico como uma saída possível para
Edmilson. Um exemplo de parceria da medicina com a psicanálise.
Falou pouco na primeira entrevista com Jorge Forbes e Mayana
Zatz. Quase sem voz e sem forças, sua mãe, presente no encontro, falou por ele.
Contou que o filho comia muito pouco, passava a maior parte do tempo deitado em
casa, sem atividade. “Edmilson se entregou, não tem vontade de nada, emagreceu
muito nos últimos meses”, desabafou a mãe. Forbes faz uma acolhida implicada:
Diz que será feita uma experiência de três meses e colocou uma exigência: “Você
terá de falar, dizer o que você quer, do contrário cessaremos o tratamento”.
Com isso marca um limite, inscreve a dimensão do tempo, semeia um senso de
urgência.
Antes de iniciar o tratamento, recebi um relatório da médica
da ABDIM e orientações de procedimentos com o paciente, que assustou a todos
pela gravidade: paciente portador de Distrofia Muscular do Tipo
Duchenne, com um quadro clínico muito complexo, envolvendo a perda de
força muscular, a insuficiência ventilatória, a miocardiopatia importante e o
estado anorético que pode estar relacionado com um estado depressivo ou de
pânico por sua fragilidade. Altura: 1,76m; Peso: 36kg.
Na primeira sessão recebi o paciente em sua cadeira de
rodas, franzino, e, embora com voz baixinha, falou muito. Na entrevista com
Jorge Forbes e Mayana Zatz havia sido notado um rebaixamento intelectual, que
se confirmou quando ele falou de sua difícil experiência escolar. Frequentou a
escola pública até a oitava série (tinha largado a escola no ano anterior), mas
não conseguia ler, nem escrever. Fiz a grafia do seu nome e ele não reconheceu.
Perguntei sua idade, mas ele não sabia. Olhei em seu prontuário: 16 anos. Ele
sorriu e confirmou. Esse ato despertou sua curiosidade, um desejo de saber de
si, abertura para sair de um alheamento. Efeito: na segunda sessão ele
disse querer retomar aulas para aprender ler e escrever. Falou também do
seu gosto pela música.
Para levar adiante a direção do tratamento inicialmente
proposta, levando em conta seu rebaixamento intelectual, o trabalho
psicanalítico teria como apoio a música e o envolvimento de Edmilson com a
aprendizagem de leitura e escrita.
Por três semanas ele não comparece às sessões por causa de
uma pneumonia. No encontro seguinte à sua alta no hospital, falou da morte de
dois amigos da ABDIM e o quanto isso o afetou. Perguntei-lhe o que significava
perder um amigo e provoquei-o a falar disso. O medo da morte foi um ponto
importante do nosso trabalho. Antes estava enjoado e desacreditando dos
tratamentos, agora queria acreditar novamente – o encontro com o real, com a
morte, o chacoalhou. Em relação aos seus recursos financeiros também mudou de
posição. Acusou a mãe de usar o dinheiro que ele recebia do INSS para ajudar na
manutenção da casa e decidiu tomar conta do seu dinheiro para uso pessoal. Foi
uma virada de 180º: responsabilizou-se por seu tratamento clínico e por seus
recursos financeiros. Na próxima sessão fizemos um plano para Edmilson escapar
da morte, com pontos elencados por ele. Mais que um plano, construiu um
decálogo para a vida.
Edmilson gostava quando eu abria meu computador e colocava
uns sambas pra tocar. Um dia apareceu com um aparelho de MP3 que havia comprado
com seu dinheiro. Nessa sessão e nas seguintes tocava músicas que gostava,
usando esse aparelho. Começou a sair mais e relatava-me passeios que fazia com
o pai e com a família.
Uma alteração genética às vezes é mutação nova, não herdada.
Era o caso de Edmilson, único da família portador da distrofia. Seus pais eram
separados. Vivia com a mãe, o padrasto, o irmão mais velho e a irmã de seis
anos. De sua história, contou que quando criança caía muito e seu pai achava
que ele era preguiçoso, tratando-o sem paciência. Sua mãe não concordava com o
marido, brigavam muito e se separaram quando ele tinha 10 anos – idade em que
foi para a cadeira de rodas. Sua mãe, segundo ele, era muito estressada e foi
quem sempre o levou aos médicos. O pai, “alegre, mas esquecido, não dá para
confiar nele”, também tinha outra família e às vezes Edmilson passava os dias
lá. Reclamava ainda que as pessoas não gostavam de falar com ele. “Escuto tudo
o que falam, às vezes até finjo que não sei, mas sei de tudo”, afirmava.
Edmilson começou a cobrar consequência e responsabilidade
dos familiares. Ficava aborrecido quando seu pai não cumpria com algum
combinado e não ia buscá-lo. Um dia me pediu que eu fosse a ponte entre o seu
pai e Forbes. Tocado pela primeira entrevista com o psicanalista, apostava que
o pai também pudesse aproveitar de tal encontro, que lhe abriria a chance de
fazer a vida diferente, ser mais feliz e passar a cumprir com seus
compromissos. Mas, no dia da entrevista com Forbes, o pai não compareceu. “Eu
sabia que ele não ia vir. Não dá pra confiar no meu pai, ele sempre foi assim”,
desabafou o jovem. Querer trazer o pai para análise foi uma mostra de se
colocar frente ao pai, uma forma de se assenhorar da sua vida.
As sessões seguiram ao som de músicas – alternamos samba,
sertanejo, baladas românticas e até rock – e de poemas, que sempre me pedia
para ler. Edmilson ganhou peso. As mudanças estavam cada vez mais aparentes. No
campo amoroso já se arvorava a falar com meninas, com a filha de um amigo do
pai, com a enteada do pai e paquerava as fisioterapeutas. O irmão mais velho
também lhe dava umas dicas e aos poucos já não tinha tanto medo de se aproximar
de meninas. No campo financeiro, as mudanças também eram nítidas. Escolhia o
que comprar todo mês, roupas ou algum equipamento eletrônico, fazia passeios no
shopping. Tinha planos de comprar um novo computador e viajar – adorava o mar.
“Descobri que tem muita coisa pra fazer, pra ver”.
Edmilson queria ousar encontrar uma mulher. Dois anos depois
de iniciado seu tratamento, completaria 18 anos. Engordou e a mãe não conseguia
mais carregá-lo. “Estou bem. Meu coração está mais forte, mas preciso fazer
dieta porque meu coração não vai aguentar se eu engordar muito”. Fez novos
planos, como quem tem pressa, como quem não tem mais tempo a perder: voltar
para a escola, cuidar melhor do seu dinheiro, ir a uma balada, sair mais,
transar com uma mulher e viajar para uma praia. Pediu para o pai, de presente
de aniversário, um encontro com uma garota de programa.
Numa sessão falou da tristeza pela perda de mais três
amigos. Pediu que eu procurasse poesias e músicas que falassem de amor e no
final da sessão um poema sobre saudade. Edmilson não era letrado – ainda não
sabia ler, nem escrever – mas apreciava e se deixava tocar pela palavra
poética.
Durante duas semanas não compareceu às sessões. Exames de
rotina, uma gripe mal curada... No final de uma tarde de domingo recebi uma
mensagem de um amigo dele, pelo Facebook, comunicando que Edmilson
tinha morrido – após desmaiar em casa, chegou sem vida ao hospital. A morte,
que rondava sua vida, desde antes de começar o tratamento, três anos antes, me
surpreendeu. E os sonhos dele? Sua luta contra a morte, seu desejo de
viver?
A música e a poesia promoveram o ressoar; por meio de
recursos sensíveis a análise despertou o racional. Ele pôde construir sua
história a partir da evocação do sensível. Um sopro de vida.
Teresa Genesini