quinta-feira, setembro 05, 2013

DO CEMITÉRIO PARA A VIDA

Relato de um caso clínico:
Na Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano – USP, criada por Jorge Forbes e Mayana Zatz, há sete anos atendemos pacientes portadores de distrofia muscular e seus familiares.Constatamos que, embora o diagnóstico da doença seja um golpe, o sofrimento geralmente tem outra causa e a distrofia funciona como uma justificativa padrão.
Steves, paciente com Distrofia Miotônica de Steinert, é encaminhado porque estava com depressão – uma espécie de desvitalização melancólica – pela morte repentina da mãe. Chegou a ficar 20 dias sem tomar banho, sem ânimo para nada. Conta, na entrevista inicial com Forbes, que duas imagens não saíam de sua cabeça: a mãe entubada no hospital e depois, deitada no caixão. Passava os dias no cemitério sentado no túmulo da mãe, sem comer e chorando. Forbes o interpreta: Você está definhando. O Steinert não faz você ficar no cemitério; isso é uma opção do Steves. Essa intervenção o surpreende e o desloca; permite iniciar o tratamento, que dura um ano.
Nas primeiras sessões, Steves continua a queixa pela perda da mãe. Depois, ao dizer que gostava de contar piadas, peço que me conte alguma. A partir de então, conta uma piada a cada sessão, até que um dia, ao sair, esquece a bengala. Quando volta para pegá-la, diz: Logo vou conseguir entrar aqui sem bengala. Através do humor, do chiste, desloca-se o gozo do sofrimento pela perda da mãe para o “contar piada para a analista”.
Antes magro e abatido, aos poucos retoma o gosto pela comida e por cozinhar. Um dia chega com um presente: um pedaço de torta de frango, uma de suas especialidades.
Steves relata um sonho com sua mãe: está bonita, diz que está bem e recomenda que ele também fique bem. Agora as imagens dela no hospital e no caixão estão indo embora, vou ficar com essa imagem do sonho, diz. Começa a contar quanto falta para terminar o luto de um ano. Intervenho: Por que não diminuir esse tempo? Por que não 9 meses? A resposta: É mesmo. Vou mandar rezar uma missa de 9 meses e começar vida nova.
Começa fisioterapia e participa das festas de final de ano da clínica. Conta que está se desapegando de muita coisa: doa móveis velhos, faz uma grande faxina, troca coisas de lugar e muda o visual da casa. Fiz uma reviravolta em casa. Questiono: E quais são seus projetos? Responde que gostaria de voltar a estudar – quer fazer curso de informática. Faz curso preparatório e é aprovado.
A reviravolta continuou também no campo amoroso: Estou fazendo uma reciclagem na minha vida, um balanço – onde errei, o que foi bom, não quero começar relacionamentos só para não ficar sozinho. Antes achava que precisava da minha mãe para viver, depois achava que a solução era ter alguém para dormir e acordar comigo. Agora sei que sou eu o responsável, eu é que tenho que estar bem; não estou mais carente.
Na última sessão nos despedimos e ele faz um depoimento: Doutora, foi muito bom para mim esse tratamento. Se eu não viesse aqui, hoje eu não estaria vivo. Quando eu precisar falar, marco uma consulta ou então venho para lhe trazer um “escondidinho”.
A modificação na vida de Steves foi sair do estado de definhamento para aumento da libido, gosto pela vida. Fez a passagem da melancolia à elaboração do luto pela perda da mãe. Steves abriu-se para a vida; o encontro com a psicanálise deu nova perspectiva a ele.
Passados seis meses, a médica clínica do Genoma, me procura preocupada porque Steves não veio fazer o controle da distrofia; não conseguia falar com ele – estaria deprimido? Ligo para ele, que me diz: Doutora, a senhora me achou por acaso; corro muito, pois estudo, faço estágio, fisioterapia  e viajo nos fins de semana com a namorada. Tinham viajado de férias para uma praia no nordeste...
Assim, deu-se o percurso de Steves – do cemitério para a vida.
Como disse Forbes no texto Felicidade não é bem que se mereça (2009): ... para alcançar a felicidade é necessária uma boa dose de ousadia e coragem, e não se medir pela expectativa do que esperam de você. Em uma análise, felicidade é suportar o inesperado.

Teresa Genesini
(link para publicação no site do IPLA: Do cemitério para a vida - e na newsletter O Mundo visto pela Psicanálise 46)

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