segunda-feira, setembro 28, 2009

POETAS E POEMAS


JOÃO CABRAL DE MELO NETO:

O artista inconfessável

Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre o fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.

Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.



Questão de pontuação

Todo mundo aceita que ao homem
cabe pontuar a própria vida:
que viva em ponto de exclamação
(dizem: tem alma dionisíaca);

viva em ponto de interrogação
(foi filosofia, ora é poesia);
viva equilibrando-se entre vírgulas
e sem pontuação (na política):

o homem só não aceita do homem
que use a só pontuação fatal:
que use, na frase que ele vive
o inevitável ponto final.



ELIZABETH BISHOP:

One Art

The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.

-Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.


Uma arte


A arte de perder não tarda aprender;
tantas coisas parecem feitas com o molde da perda
que o perdê-las não traz desastre.
Perca algo a cada dia.
Aceita o susto de perder chaves,
e a hora passada embalde.
A arte de perder não tarda aprender.
Pratica perder mais rápido mil coisas mais:
lugares, nomes, onde pensaste de férias ir.
Nenhuma perda trará desastre.
Perdi o relógio de minha mãe.
A última, ou a penúltima,
de minhas casas queridas foi-se.
Não tarda aprender, a arte de perder.
Perdi duas cidades, eram deliciosas.
E, pior, alguns reinos que tive,
dois rios, um continente.
Sinto sua falta, nenhum desastre.
- Mesmo perder-te a ti (a voz que ria, um ente amado),
mentir não posso.
É evidente: a arte de perder muito
não tarda aprender, embora a perda
- escreva tudo! - lembre desastre.
(tradução Horácio Costa)



LETÍCIA GENESINI:

Quadrinha

Maldito deus em que não acredito,
Vieste e tiraste um pedaço de mim.
Entornaste sem medida a fé fingida
Que depositava em ti.



Razão da pouca escrita

Como dizer de um coração que anda sem abrigo,
Desgarrado do peito?
Aflito, sem casa.
Sem alma para enfastiar,
Sem ânsia para conter,
Nem língua para amargar.
Pobre coração que não tem mais
Caixa toráxica.
Invólucro ósseo para ecoar paixões.

E assim, infértil o peito,
Fica mudo o corpo,
Pois as pontas dos dedos
Mal sabem o que diz um coração.

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