Gostar de sofrer
Jorge Forbes
O psicanalista declara: -“O
sujeito goza em seu sofrimento”. O povo traduz: - “As pessoas gostam de
sofrer”. Todo mundo sabe disso, usa a expressão com frequência, mas acha que é
brincadeira por não ser possível, em sã consciência, alguém gostar de sofrer. E,
no entanto, isso é muito comum.
Como ninguém quer dar recibo, nem
para si mesmo, do seu gosto do sofrimento, acaba incorrendo em uma prática
dolorosa. Não querendo ser descoberta, a pessoa intensifica suas queixas e
dores para melhor justificar seu momento sofredor. Assim, aquela que sofre pela
velhice de um parente próximo, ou de uma doença grave, ou de uma perda
importante, a cada dia, se surpreende com esse fato, como se fosse algo novo. É
um modelo geral que se aplica às mais diversas situações da vida.
Isso explica, em parte, o
crescimento do diagnóstico de depressão. Estamos vivendo uma epidemia de depressão. A
pessoa não está muito bem, anda triste, esquecida, dorme mal ou dorme muito, lá
vem a explicação: está deprimida. Entre não saber o que tem e aceitar um rótulo
que todo mundo compreende e respeita, a pessoa se agarra ao segundo.
Assim foi com Maria. Ela não
poderia ter outra coisa se não estar deprimida. Com distrofia muscular nos
braços e nas pernas, andando em cadeiras de rodas e dependente do seu marido
cheio de saúde, o diagnóstico estava pronto só faltando o
psiquiatra-psicanalista avalisar, medicar, e explicar como ela deveria melhor
se resignar a seu estado depauperado. Mas não foi nada disso que ocorreu.
Na primeira consulta entraram os
dois, Maria e seu marido. Era um homem de forte envergadura, vistoso,
contrastante com o estado e o aspecto de sua mulher. Começada a entrevista,
Maria mal falava, nem mesmo levantava a cabeça. O analista perguntou se ela queria
que o marido se retirasse. Ela não respondeu. Ele, o marido, repetiu a
pergunta. Frente ao insistente silêncio dela, afirmou o analista: - “Sim, ela
quer que o senhor se retire”. Surpreso, ele saiu. Ato contínuo, ela levantou
pela primeira vez a cabeça e declarou: - “Doutor, como é que alguém pode estar
bem com um traste desses do lado?”. Começou a se queixar do traste que a
cansava, pois, medroso de andar sozinho, a forçava a acompanhá-lo em suas
visitas de vendedor.
Solicitada a contar a história de
seus relacionamentos amorosos, com cara de desalento, explicou que aquele homem
era o seu segundo marido e que tinha se separado do primeiro, pelo fato do
anterior ser um traste maior ainda. A repetição da nomeação “traste” levou à
pergunta se o seu problema não seria a “trastite”, ou seja, a escolha
repetitiva de trastes como objetos amorosos. Ela abriu um sorriso radioso de
confirmação do sintoma e vontade de falar a respeito. Seu tratamento começou
assim, bem distante do sofrimento padronizável.
Moral da história: muitas pessoas
se aferram a um sofrimento de alto valor social, para se justificarem em suas
dificuldades. Por isso gozam no sofrimento, perdendo a sua singularidade. Cada
um de nós chora ou sorri por detalhes irrelevantes aos olhos dos outros.
Difícil é reconhecer e sustentar isso.
Artigo publicado na revista IstoÉ Gente, julho de 2014.
Publicado também na edição 91 de O Mundo visto pela Psicanálise.
Nenhum comentário:
Postar um comentário