Esse artigo de Jorge Forbes foi publicado em O Mundo Visto pela Psicanálise
De janela aberta
A cidade é temida. Em todos os
consulados se preparam avisos a seus cidadãos - de visita ou de residência -
com normas de defesa: não ostente, leve pouco dinheiro, não ande sozinho, feche
as janelas, não desperte curiosidade. Ponham grades, ponham grades, ponham
grades. Assim alertam os especialistas em proteção pessoal, ao se referirem a
certas cidades brasileiras, no caso, ao Rio de Janeiro.
A diplomacia do Vaticano deve ser
muito ruim, ou o seu chefe de estado é absolutamente insubordinado. Em sua
primeira viagem apostólica, o novo Papa - aquele que se diz do fim do mundo –
viveu uma situação calamitosa, aos olhos escuros dos especialistas formados na
escola da paranoia defensiva. Ao chegar ao aeroporto do Galeão, o viajante de
branco deu preferência ao mais banal dos carros, aquele tipo casca de ovo, para
fazer o seu primeiro percurso até a catedral metropolitana. Foi aí que o
impensável, melhor, não tão impensável assim, o que era temido aconteceu. Para
pasmo geral, ele (seu motorista, é claro) se perdeu: tomou a avenida errada e
se viu imobilizado em um gigantesco engarrafamento. Curiosamente, em vez de ir
para o seu palco, livre e desimpedido, caiu em meio à sua própria plateia
congestionada. Pânico, suspense, silêncio. O que ele vai fazer? Será que vão
cercar o carro com um batalhão de choque? Será que um agente vai se jogar sobre
o seu corpo justificando o título de “guarda-corpo”? Não, nada disso ocorreu.
Sua Santidade, para pasmo geral, de janela aberta estava, de janela aberta
continuou. E sua atitude em si avisava que não compartilharia de nenhum show
bopesco.
Deu-se, diriam alguns, um
milagre.
O que ocorreu, a meu ver, foi uma
mudança de perspectiva, ou seja, de paradigma. Em vez de se confrontar ao
possível opositor, em vez de dar consistência a ele, se apresentando mais
poderoso, por exemplo, dando uma de Sumo Pontífice - como falou Caetano, do Rei
- Francisco faz um gesto que não atemoriza o agressor em potencial, mas o
ridiculariza. Esse é o ponto: vencer pela vergonha, não pelo medo.
Mutatis mutandis, comparemos esse
exemplo com a resolução da altíssima taxa de criminalidade da cidade de Nova
Iorque, no fim nos anos 90. Quando já se tinham esgotados todas as tentativas
de dar maior poder repressivo à polícia, também se deu uma mudança paradigmática,
muito bem comentada pelo jornalista Malcom Gladwell. Não se tratava mais de
fazer a grande e bombástica captura do representante do star system criminoso,
mas de despender tempo, paciência, dinheiro, cuidado, homens, em supostas ações
menores como a de limpar as pichações dos vagões de metrô, todos os dias,
exaurindo os pichadores. A mudança de contexto tem um poder, o Poder do
Contexto, que inibe o crime. Em seguida à limpeza dos trens, vieram outras
ações de mesma inspiração, todas aparentemente frugais. Essa política foi
descrita como “teoria das janelas quebradas”, por James Q. Wilson, George
Kelling e Catherine Coles. Foi difícil convencer àqueles duros policiais que
isso daria certo, ou mesmo, que só isso daria certo. Se me habituo com uma
janela quebrada, também me habituo a duas, a três, e me abro ao menosprezo da
cidadania.
Alguém poderia perguntar: - E lá
importam janelas quebradas e pichações no metrô? Não seria cuidar só do
superficial? Ficou demonstrado que não. A quem assim pergunta também poderíamos
lembrar que um tumor canceroso incomoda muito, mas não mais, por vezes, que uma
farpa debaixo da sua unha. Qual lhe demanda maior urgência? Acrescente-se o
aspecto fundamental que o Poder do Contexto se espraia em epidemia. Se uma, e
mais outra, e ainda mais outra pessoa envergonha a ação criminal, a partir de
pequenas ações, isso se transforma em um vírus social, em uma ação que pode curar
uma cidade como se passou em Nova Iorque.
O mundo pós-moderno responde a
esse novo paradigma. Não às janelas blindadas, mas às janelas abertas.
Jorge Forbes
Artigo publicado também na revista
Gente IstoÉ, abril de 2014.
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