Entrevista com Nelson Screnci para IPLA – O MUNDO VISTO PELA
PSICANÁLISE
TG - O que faz sua cabeça? O divã?
NS - O divã só faz a minha cabeça se à sua frente houver uma
pintura. Qualquer uma, de qualquer qualidade e fatura. Só então sou capaz de “viajar”
e “analisar” cada detalhe da imagem e pensar como poderia refazer tudo aquilo
se me fosse dada tal oportunidade.
Por outro lado, o divã me fascina. A sua presença em qualquer ambiente sugere um
lugar de repouso, reflexão e, por que não, reencontro. Acredito que se não me
ocupasse da pintura, seria um assíduo frequentador de divãs... Indo mais longe,
chego a pensar que o trabalho de criação e todos os passos que o envolvem me
salvaram da monotonia da realidade. Não vejo sentindo nenhum numa vida sem
arte.
TG – E a arte?
NS - A arte pode estar na mente, no quadro, e até no divã. Mas para mim, é o que
faz o ser humano sonhar e o transporta
para novas possibilidades de viver com mais prazer. Só a arte é capaz de tornar
a vida menos árdua. E isto serve para qualquer pessoa, independentemente de sua
origem, formação ou cultura. É claro que a sua fruição torna-se mais profunda
ou sofisticada na mesma medida em que são ampliadas as referências e o
conhecimento de suas modalidades.
3– Metamorfoses – por que? Seria uma repetição que leva à
invenção?
As transformações surgem a partir do que se apresenta igual.
A invenção seria o grau de alterações sofridas durante o processo de mutação de
um modelo único. Só a arte pode materializar o que a imaginação duplica. Na
realidade, sabe-se que não existem duas coisas exatamente iguais na natureza.
Portanto, mesmo no que parece idêntico, há sempre uma partícula que, por mais
ínfima que seja, é sempre um indicador de diferenciação. As metamorfoses
representadas por desenhos induzem necessariamente o pensamento às comparações
e analogias. Utilizá-las como elementos compositivos é propor a articulação
desse jogo em função do aparecimento de novos significados para imagens já
conhecidas.
TG – Fale do seu livro – “Decálogo de um Pintor” – de
2010.
NS - O “Decálogo de um Pintor” surgiu da necessidade de fazer uma
reflexão sobre um longo período de trabalho. É o resumo de uma atividade que
exerço há mais de 30 anos de forma contínua, porém nem sempre linear. O texto
comenta algumas passagens biográficas que remetem às obras produzidas e tem o
objetivo de orientar e estimular os jovens artistas e professores de artes
visuais.
TG – Você
é Artista Plástico, Professor de Artes Visuais e de História da Arte. Como
você se define?
NS - Eu me defino como Artista Plástico, ou melhor, como simplesmente
um “Pintor”. As atividades de Professor de Artes Visuais e História da Arte
estão intrinsecamente ligadas ao exercício da pintura e lhe são, de certa
forma, complementares. Portanto, a obra
é o ponto de convergência de todas as outras ocupações que exerci ou venha a
exercer.
TG – Do que você gosta mais?
NS - A minha linguagem preferida é a da pintura. Gosto muito
também do desenho. E aprecio também as outras modalidades, como a escultura,
fotografia, a música e o cinema. O cinema, sem dúvida, é a grande arte do
Século XX, pois reúne todas as outras em um só corpo expressivo.
TG – O que você espera com sua arte? Que consequência?
NS - Eu espero provocar nas pessoas o aparecimento dos seus
melhores sonhos.
TG – Algum contato com a psicanálise? Como você vê a relação
psicanálise e arte?
NS - As relações que existem entre arte e psicanálise são as
mesmas que poderiam existir entre ciência e arte. Ambas tratam da subjetividade
do ser humano, com propósitos, métodos e enfoque muito diferentes. Eu não me
arriscaria a falar mais sobre um assunto complexo como a psicanálise, sobre o
qual possuo apenas noções rudimentares. Mas admiro sua ação de tentar salvar
pessoas retirando-as dos mundos infernais de sofrimento a que estamos, todos,
de uma forma ou de outra, sujeitos.
TG – Como é, em termos de sua arte,
viver entre a montanha, São Bento do Sapucaí e a metrópole, São Paulo?
NS - É meio mágico. Eu vejo o interior como um ambiente de
fantasia. Um mundo que admirava à distância por sua misteriosa proximidade com
a natureza. As montanhas da Serra da
Mantiqueira que cercam a pequena São Bento são de uma beleza exuberante! As
paisagens são inspiradoras para qualquer artista que se proponha a contemplá-las.
Por outro lado, o provincianismo dos habitantes também é grande. Sinto saudades
de São Paulo por sua riqueza de opções culturais, infelizmente muito
desvalorizadas e depreciadas em cidades muito pequenas. As “pracinhas” com
cinema ou teatro já fazem parte de um passado que não conheci, pois nasci na
mesma década da televisão no Brasil. Resta
tentar imaginar o que teria sido em outros tempos. E é também função da
arte suprir com a imaginação e poesia certas lacunas de memória.
TG - O mundo está mais acelerado. Qual é a forma da arte em
um mundo que anda a passos tão rápidos? Ela consegue responder em tempo aos
anseios humanos e sociais?
NS - O mundo é acelerado nos grandes centros. Aqui, entre as
montanhas, tudo é muito mais lento. Inclusive há tempo para demoradas leituras.
Pena que não há museus de arte. Mas a internet vem suprindo essa carência,
quando se tem preparação e interesse para acessá-la.
A arte pode assumir diversas formas, mas não evolui como a
ciência, progressivamente. Isto porque a arte, além da manifestação de ideias,
trata dos sentimentos e emoções humanas
que, ao que tudo indica, mudaram muito pouco desde a pré-história...Não
se mede a evolução da arte por meio de progressos tecnológicos. Os meios de
expressão podem estar cada vez mais sofisticados, mas continuam servindo
essencialmente para a mesma finalidade ancestral de representar a subjetividade
humana em toda sua rica complexidade.
TG - A linguagem pop e influenciada pela cultura de massa é
uma referência do seu trabalho. Como essas características dialogam com a
singularidade, o individual, o artesanal (tão indispensáveis na psicanálise)?
NS - Em todos os meus trabalhos a referência à linguagem pop é
extremamente crítica. Trata-se de uma admiração por uma visualidade que se
tornou nova utilizando-se de meios antigos, mas que não nasceu como um elogio à
cultura de massa. Pelo contrário, é uma proposta para reflexão sobre o lado
mais nocivo e mecanicista de uma nova maneira de viver proposta em meados do
século passado, voltada essencialmente ao consumismo e à vulgarização dos bens
culturais.
TG - A arte é terapêutica? É mais terapêutica para o artista
ou para quem frui dela?
NS - A arte é terapêutica quando utilizada como tal. A arte-terapia
já é uma disciplina independente da criação artística em si. Sua finalidade
determina os meios a serem empregados, e não o contrário. A prática artística
mais autêntica só se consuma plenamente quando a experimentação leva a
resultados surpreendentes.
Não acredito que o simples fruir de uma obra artística seja
por si só uma terapia. Pode ser complementar. Mas a arte não possui uma
finalidade única. As razões de sua existência fogem até de quem a pratica e,
principalmente, de quem se propõe a refletir sobre elas e encontrar uma
resposta única.
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Decálogo de um Pintor (por Nelson Screnci)
1. Não existem
regras para iniciar uma pintura. Existe, sim, um repertório.
2. A pintura é um
grande exercício de autoaprendizagem e de abnegação.
3. Quem diz que
sabe pintar bem já começou a desaprender.
4. Pintar é sempre
um privilégio, e quase sempre uma felicidade, uma alegria!
5. A melhor pintura
é sempre a que se está fazendo no momento.
6. Pintar é
transformar materiais e pessoas em novos materiais e pessoas.
7. Mais difícil do
que começar a pintar é decidir quando a obra termina.
8. Sem disciplina
não existe trabalho. Sem trabalho não existe arte.
9. Pintar pensando
em ser avançado já é um sinal de estar no passado.
10. Para o artista, a arte termina onde começa o mero exercício
da vaidade.