sexta-feira, fevereiro 22, 2008

PROFANAGAMBEANDO


Os latinos chamavam Genius ao deus a que todo homem é confiado sob tutela na hora do nascimento.

Fraudar o próprio gênio é tornar triste a própria vida. (A riqueza da vida está nos detalhes).

As crianças sentem um prazer especial em se esconder. E não para serem descobertas no final. Há, no próprio fato de ficarem escondidas, no ato de se refugiarem na cesta de roupa ou no fundo de um armário, no de se encolherem no canto do sótão até quase desaparecer, uma alegria incomparável, uma palpitação especial, a que não estão dispostas a renunciar por nenhum motivo.

O estilo de um autor, assim como a graça de cada criatura, depende, porém, não tanto de seu gênio, mas daquilo que nele é isento de gênio, de seu caráter. Por isso, quando amamos alguém, não amamos propriamente nem seu gênio nem seu caráter (e muito menos seu Eu), mas a maneira especial que ele tem de escapar de ambos, seu desenvolto ir e vir entre gênio e caráter.

Viver bem e viver feliz são duas coisas diferentes, e a segunda, sem nenhuma magia, certamente não me tocará. Para isso, deveria acontecer algo verdadeiramente fora do natural. (Walter Benjamin)

É uma desgraça sermos amados por uma mulher porque o merecemos! E como é chata a felicidade que é prêmio ou recompensa por um trabalho bem feito!

Quem é feliz não pode saber que o é; o sujeito da felicidade não é um sujeito, não tem forma de uma consciência, mesmo que fosse a melhor. Nesse caso a magia faz valer sua exceção, a única que permite a um homem dizer-se ou considerar-se feliz.

Só o encantado pode dizer sorrindo: “eu”, e só a felicidade que nem sonharíamos merecer é realmente merecida.

A criança nunca fica tão contente quanto quando inventa uma língua secreta própria. Sua tristeza não provém tanto da ignorância dos nomes mágicos, mas do fato de não conseguir se desfazer do nome que lhe foi imposto. Logo que o consegue, logo que inventa um novo nome, ela ostentará entre as mãos o passaporte que a encaminha à felicidade.

Ter nome é a culpa. A justiça é sem nome, assim como a magia. Livre do nome, bem-aventurada, a criatura bate à porta da aldeia dos magos, onde só se fala por gestos.

Acredito que haja uma relação secreta entre gesto e fotografia.

É essa natureza escatológica do gesto que o bom fotógrafo sabe colher; sem, porém, diminuir em nada a historicidade e a singularidade do evento fotografado.

A imagem fotográfica é sempre mais que uma imagem: é o lugar de um descarte, de um fragmento sublime entre o sensível e o inteligível, entre a cópia e a realidade, entre a lembrança e a esperança.

O ajudante é a figura daquilo que se perde, ou melhor, da relação com o perdido.

Os ajudantes são nossos desejos insatisfeitos, aqueles que não confessamos sequer a nós mesmos.

O que o perdido exige não é ser lembrado ou satisfeito, mas continuar presente em nós, como esquecido, como perdido, e unicamente por isso, como inesquecível.

O ser especial é delicioso, porque se oferece por excelência ao uso comum, mas não pode ser objeto de propriedade pessoal. Do pessoal, porém, não são possíveis nem uso nem gozo, mas unicamente propriedade e ciúme.

O ciumento confunde o especial com o pessoal, o bruto confunde o pessoal com o especial.

O especial transforma-se em espetáculo. O espetáculo é a separação do ser genérico, ou seja, a impossibilidade do amor e o triunfo do ciúme.

A marca do autor está unicamente na singularidade da sua ausência. (Beckett)

(Giorgio Agamben, do livro PROFANAÇÕES)

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